sexta-feira, 15 de julho de 2011

"Tudo por um filho"

Desde que o mundo é mundo, a história é a mesma: homens e mulheres se conhecem, se casam e, mais cedo ou mais tarde, querem aumentar a família. As coisas não ocorrem necessariamente nessa ordem, mas ter filho é o caminho natural da espécie. Bem, para dois em cada dez casais o caminho não é tão natural assim. Oito milhões de casais brasileiros simplesmente não conseguem ter filhos por métodos naturais. São infertéis por variadas razões. Há uma excelente notícia para quase todos eles: a ciência já é capaz de vencer a batalha em nove de cada dez casos de infertilidade. No que diz respeito à esterilidade masculina, as chances são ainda maiores. Elas beiram os 100%. "Com todas as ferramentas que a ciência já colocou a nossa disposição, praticamente todos os casais podem ter filhos hoje", diz o ginecologista Eduardo Motta, professor da Universidade Federal de São Paulo e diretor do Centro de Medicina Reprodutiva Huntington.

Não existe casamento mais feliz: a ousadia dos cientistas só é superada pela dos pais, dispostos a tudo por um filho. Mulheres podem engravidar depois da menopausa, a falta de espermatozóides deixou de ser impedimento à paternidade e já é possível adotar uma criança na forma de um embrião de apenas oito células, senti-la desenvolver-se numa gravidez normal e trazê-la ao mundo num parto perfeitamente convencional. Em Vitória, no Espírito Santo, uma contadora de 40 anos está entrando na nona semana de uma gestação produzida por uma técnica novíssima, a do congelamento de óvulos. Ela tinha tomado o cuidado de congelar seus óvulos há três anos, após receber o diagnóstico de menopausa precoce. Em março, finalmente, resolveu que era hora de encomendar o bebê. Os óvulos foram descongelados, fertilizados com o sêmen do marido e implantados em seu útero. Em São Paulo, uma administradora de empresas decidiu engravidar novamente três décadas depois de ter a primeira filha. Procurou ajuda médica, implantou um óvulo doado e ficou grávida à beira dos 54 anos. Sua filha, Mariana, tem agora 6 anos. "Sou mãe com paciência de avó", diz ela. 



Os anos 90 foram a década da reprodução assistida no Brasil. A maioria das 130 clínicas existentes no país surgiu nos últimos dez anos. Em 1993 foram realizadas 300 tentativas de fertilização artificial. No ano passado, chegou-se a 6.000. Dois mil bebês nascem por ano. O número, que não representa nem 1% do total de nascimentos, ainda é modesto se comparado ao de países ricos. Na França, quase metade dos bebês é resultado do trabalho de laboratório. Mas o Brasil fincou bandeira no cenário internacional. Experiências inéditas e referenciais para a ciência mundial são feitas por brasileiros. Cientistas experimentam novas técnicas e medicamentos tão logo eles são apresentados em algum canto do mundo. A ousadia garantiu prestígio na área reprodutiva que só encontra paralelo na cirurgia plástica, ramo da medicina no qual o Brasil desfruta reputação como centro de excelência. Desde o nascimento do primeiro bebê de proveta, uma inglesinha chamada Louise Brown, em 1978, as técnicas evoluíram de modo espetacular. A chance de obter uma gravidez em laboratório era então a de um tiro no escuro – não ultrapassava a taxa de 5%. Cinco anos atrás, o índice médio de sucesso chegava a 25%. Hoje está em torno de 35%, com possibilidade de alcançar 50% de acordo com a técnica utilizada. Em outras palavras, significa que, atualmente, de cada três casais que se submetem aos tratamentos de infertilidade, dois já levam pelo menos um bebê para casa.

O salto é ainda mais impressionante se considerarmos que se trata de estatística por tentativa. Ou seja, a cada período fértil da mulher. Para se ter idéia das dificuldades de gerar uma nova vida, a probabilidade de uma gravidez natural em casais normais varia de 18% a 20% a cada mês. Pode-se dizer que os casais inférteis que se submetem a tratamentos têm quase o dobro de chance de engravidar que um casal sem problema algum de infertilidade.

A técnica que deu origem ao primeiro bebê de proveta consistia em retirar o único óvulo produzido pela mulher e colocá-lo num vidro (a proveta) junto com os espermatozóides do homem. Então, esperava-se que o resto acontecesse naturalmente, ou seja, que um espermatozóide conseguisse penetrar o óvulo e fecundá-lo. Em seguida, o embrião era transferido para o útero da mãe. A distância entre a eficácia desse método pioneiro e o que se faz hoje pode ser comparada à existente entre a válvula e o chip de computador. Antes de mais nada, descobriu-se um hormônio capaz de estimular a ovulação. Em condições normais, apenas um folículo amadurece a cada ciclo, e só um óvulo é liberado. Hoje, com a ajuda médica, consegue-se uma média de dez óvulos a cada vez. A chance de engravidar multiplica-se pela quantidade de óvulos disponíveis. Os nascimentos múltiplos são, por sinal, um efeito colateral indesejado ainda sem solução.

O bebê de proveta é o método mais corriqueiro, simples e barato de reprodução assistida. Já resultou no nascimento de 300.000 crianças, 7.000 delas no Brasil. O princípio é o mesmo do tempo de Louise Brown, mas conta-se com a possibilidade de o espermatozóide não conseguir penetrar o óvulo – problema comum em casos de infertilidade. O que se faz então é injetá-lo com uma agulha finíssima na célula feminina, garantindo assim a fecundação. "O objetivo é eliminar os obstáculos ao trabalho dos espermatozóides", resume o húngaro Peter Nagy, um dos primeiros a usar o procedimento, em 1991. A manipulação de gametas ficou mais eficiente com o aperfeiçoamento do microscópio nos anos seguintes. Além de lentes de maior acuidade, o aparelho transformou-se numa espécie de robô com dois braços: um segura o óvulo, outro, a agulha que conduz o espermatozóide. Houve também avanço nos procedimentos de diagnósticos, com instrumentos que permitem o exame visual do interior do útero. A soma disso tudo permitiu à medicina reprodutiva dar o grande salto na virada do milênio, o da manipulação genética.

Durante cinco anos, a empresária Lúcia Pinto, de Campinas, no interior de São Paulo, tentou engravidar. Depois de várias experiências com fertilização in vitro, descobriu-se que não produzia óvulos saudáveis, problema comum em mulheres por volta de 40 anos. Na época, ela tinha 38. Seu médico adotou uma técnica então recém-inventada e até hoje proibida na maioria dos países, a transferência de citoplasma. Pegou o óvulo de Lúcia, retirou parte do citoplasma e injetou parte do citoplasma de um óvulo jovem de uma doadora. Os especialistas acreditam que a troca de 10% a 15% do citoplasma "ruim" pelo "bom" é capaz de devolver vitalidade ao óvulo mais fraco. A técnica ainda é experimental, mas resultou em três dezenas de nascimentos no Brasil. Deu certo com Lúcia. Ela engravidou de Rafaela, agora com 2 anos. "Já estava perdendo a esperança", diz Lúcia. "Demorou muito até que eu conseguisse engravidar, foi um processo muito doloroso."

Não faz muito tempo, aos 40 anos as mulheres já se preparavam para ser avós. O corpo está mais bem preparado para a maternidade entre os 20 e os 30 anos, e ser mãe pela primeira vez depois dos 35 anos era extremamente arriscado. O que se vê hoje é o contorno de outra realidade. É cada vez maior o número de mulheres que adiam a gravidez para os 40, 50 anos de idade. Os motivos são os mais diversos. Atingir a maturidade profissional encabeça a lista. Em seguida vêm a vontade de ter filhos no segundo casamento, os planos de viagens, de estudos. O problema é que a partir dos 35 anos a quantidade de óvulos que a mulher produz sofre redução significativa, e depois dos 45 praticamente desaparecem. Assim, boa parte das mulheres que deixam a gravidez para mais tarde enfrenta o drama de já estar infértil. A solução clássica da medicina é recorrer a doadores. Pega-se o óvulo de outra pessoa, fecunda-se com o sêmen do marido (ou de outro doador) e gera-se uma criança com relativa facilidade. Teoricamente, não há limite de idade para a mulher engravidar. Suas limitações se restringem à produção de óvulos e a suas condições físicas. Em bom estado de saúde, ela pode ter filhos a qualquer hora, mesmo na menopausa. "O corpo vai estar sempre preparado para a gestação", diz o médico Edson Borges, presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida.

Praticamente toda mulher pode ser mãe se estiver disposta a aceitar o óvulo de outra mulher, a adotar um embrião ou recorrer à barriga de aluguel. O recorde mundial é de uma italiana, que foi mãe aos 63 anos. Agora, à beira dos 70, seu filho tem 6 anos de idade. O título brasileiro pertence a uma baiana de Salvador, de 62, mãe de um garoto de 4. Ambas se tornaram mães com a ajuda de um óvulo doado. Nem sempre dá certo, evidentemente. Os médicos não conseguem chegar a um diagnóstico preciso em 8% dos casos de infertilidade feminina, e 1% das mulheres não engravida de jeito nenhum. Quando nada parece dar certo ou não há disposição para o penoso tratamento da fertilização in vitro, resta um último recurso: a adoção de um embrião abandonado numa clínica de fertilização. Estima-se que existam no Brasil 20.000 embriões congelados. Nos Estados Unidos, são 250.000. Em cada ciclo de fertilização artificial, uma mulher gera uma dezena de óvulos. Para evitar nascimentos múltiplos, no máximo quatro são implantados em seu útero. O restante é congelado para, quem sabe um dia, ser utilizado novamente pelo casal. Ocorre que a maioria desiste de ter mais filhos, e, para complicar, uma resolução do Conselho Federal de Medicina proíbe a destruição do material. Essa sementinha de vida tem apenas oito células, desenvolvimento atingido no terceiro dia após a concepção. Cerca de 200 brasileiros foram adotados em forma de embrião nos últimos cinco anos. Vânia, médica carioca de 48 anos, era recém-divorciada e já não ovulava quando adotou dois embriões – hoje um rechonchudo casalzinho de 1 ano e 9 meses. "Eles estavam dentro de um tubo de ensaio", conta. "Tudo que se via era a gotinha cor-de-rosa do soro anticoagulante sobre os embriõezinhos." No início, ela foi atormentada pelo pensamento de que tinha dentro de si algo que não era dela. A sensação passou em três meses, quando a barriga começou a crescer. "Eles estariam mofando num freezer se eu não os tivesse tirado de lá", diz. "Eu os alimentei dentro do meu útero durante nove meses. Eles não existiriam sem o meu corpo."

Ela tem razão. Os médicos já sabem que o útero não é apenas um lugar para alojar o bebê por nove meses. Além de fornecer alimento e condições de desenvolvimento, o ambiente uterino funciona como antídoto para as aberrações que a genética pode produzir. Ao contrário do que a maioria supõe, o código genético não cuida sozinho do desenvolvimento do feto. É a troca de sangue com a mãe que ativa os genes do embrião e determina o momento exato de formar os órgãos e membros. Embriões sadios implantados no útero de mulheres diabéticas podem desenvolver a doença simplesmente por emulação da biologia materna. Por isso, é improvável que um dia exista um útero artificial.

De todos os avanços da reprodução artificial, a área que chegou mais longe foi a dos tratamentos de problemas masculinos, que representam 30% de todos os casos de infertilidade. As mulheres são responsáveis por outros 30% e o casal, pelos 40% restantes. Veja o caso de Cláudio, de 39 anos, e Ormezinda, 37, do Rio de Janeiro. Durante treze anos, o analista de sistemas e a dona-de-casa tentaram ter filhos – e nada. Descobriu-se então que Cláudio padecia de azoospermia, ou ausência de espermatozóides no sêmen. Ele não quis aceitar uma doação de sêmen. "Achava que as pessoas podiam confundir esterilidade com impotência", diz. Ele não tinha espermatozóides, mas dentro de seu testículo carregava espermátides, as células que, depois de amadurecidas, se transformam em espermatozóides. O médico então experimentou uma técnica que amadurece a espermátide em laboratório. No seu caso as chances de sucesso eram estimadas em 48%. Deu certo. Os óvulos de Ormezinda (que fez promessa para Nossa Senhora Aparecida) foram fertilizados in vitro com os gametas do marido e ela engravidou na primeira tentativa. Gabriel, Lucas e Iasmin nasceram há um ano e sete meses. De acordo com os especialistas, de cada 100 homens, 96 têm espermatozóides no sêmen. Entre os quatro que não têm, três possuem o gameta dentro dos testículos ou dos epidídimos, canais que conduzem o esperma. Aquele que não possui nenhum espermatozóide ainda conta com cerca de 50% de chance de ter a espermátide.


Técnicas como a transferência de citoplasma e o amadurecimento de espermátides estão entre as mais avançadas existentes. Na sexta-feira passada, cientistas americanos anunciaram o nascimento de quinze bebês gerados a partir de óvulos geneticamente alterados. Para corrigir problemas de infertilidade das mães, eles injetaram genes de doadores saudáveis. O resultado é que os bebês têm o código genético proveniente de três pessoas, não apenas da mãe e do pai. Pesquisas parecidas, altamente experimentais, são feitas em clínicas brasileiras. Peter Nagy, que imigrou para o Brasil na década passada, trabalha numa técnica que permite transformar qualquer célula não-reprodutiva do corpo de uma mulher em óvulo saudável. O primeiro embrião (como se chama o estágio inicial do desenvolvimento da nova vida) produzido por esse método está guardado num tanque de nitrogênio, a uma temperatura de 80 graus negativos, numa clínica paulista. Antes de transplantá-lo para o útero da mãe, uma advogada de Manaus, de 44 anos, os médicos aguardam os resultados de cobaias animais submetidas ao mesmo procedimento. Por essa razão, esperam ansiosos pelo nascimento de 21 bezerros gerados por esse método. Seis vacas estão em um curral da escola de Veterinária da Universidade de São Paulo. Há cinqüenta mulheres numa lista de espera dispostas a correr o risco da experiência para ter o próprio filho. "Apesar de o embrião ser comprovadamente sadio, é melhor esperar, porque nunca se sabe o que pode acontecer no ventre", diz o urologista Roger Abdelmassih, dono da maior clínica de fertilização artificial do Brasil, na qual se desenvolveu a nova técnica.

A criação de um óvulo artificial está tão próxima da clonagem que dá arrepios – mas são coisas diferentes. Na clonagem, se faz cópia completa de um indivíduo adulto a partir de uma de suas células. O processo é tão mais complexo e arriscado que nunca foi repetido depois do nascimento da ovelha "Dolly", em 1997. A advogada amazonense faz parte daquela minoria cujos problemas de gestação insistem em desafiar a ciência. Devido a uma anomalia genética, seus óvulos produzem embriões defeituosos. Pelos exames realizados em laboratório, o embrião gerado pela união do óvulo artificial com o espermatozóide de seu marido não tem nenhum problema. "O importante é que meu bebê seja perfeito, não o método de concepção", disse a futura mamãe a VEJA. "Não vejo a hora de poder gerá-lo, como fazem todas as mulheres do mundo."

Mesmo com todo o avanço da ciência, está longe o dia em que todas as questões, das afetivas às éticas, serão encaradas com naturalidade. Natural é ter filhos concebidos em casa, não nos ambientes frios e calculistas de uma clínica. O caminho da ciência exige mais sacrifícios. Embora o grau de sucesso da reprodução assistida tenha melhorado espetacularmente, vale relembrar que apenas três em cada dez mulheres conseguiram engravidar na primeira tentativa. Toda nova tentativa exige injeções diárias de hormônios para provocar ovulação. O tratamento cobra do casal muito controle, dedicação e exames dolorosos. A cada nova menstruação, o mundo parece desabar. "A frustração é enorme. Culpa, vergonha e tristeza são sentimentos que acompanham a jornada desses casais", diz a psicóloga Débora Seibel, de São Paulo, que se especializou em tratar casais que tentam engravidar em clínicas de fertilização. Chega uma hora em que é o próprio desgaste emocional que estabelece seus limites. "Os níveis de stress e depressão são altíssimos", afirma outra psicóloga, Liliana Seger, autora de uma tese de doutorado pela Universidade de São Paulo que avalia o impacto emocional nos casais que procuram ajuda médica. Liliana acompanhou dezenas de casais em tratamento durante um ano em duas clínicas paulistas. "O principal motivo é que há muito investimento em jogo – tanto emocional quanto financeiro."

Sim, dinheiro também é um fator. Um tratamento em clínicas particulares sai bem caro. Cada tentativa pode custar quase o preço de um carro popular – entre 6 e 12.000 reais. Até conseguir um bebê, um casal alcança facilmente a cifra de 30.000 reais. Uma clínica chega a oferecer pacotes: pagam-se 15.000 reais por três tentativas. Já existem sete hospitais públicos no país – em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre, Campinas e Ribeirão Preto – que oferecem o serviço de graça. Mas, com exceção do Hospital Pérola Byington, de São Paulo, é o próprio paciente quem paga pelo medicamento, que pode custar entre 500 e 3.000 reais. As filas são um obstáculo: mais de 300 pessoas esperam pelo atendimento em cada unidade. A maioria não desanima, disposta a tudo por um filho.

Fonte: Revista Veja

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