segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Maternidade de substituição no ordenamento jurídico brasileiro e no direito comparado



1. INTRODUÇÃO
  A possibilidade científica de uma mulher conceber filho biológico fora de seu útero, aliada à idéia de que poderão coexistir até três maternidades, gera discussões na sociedade tanto de cunho ético como também jurídico, uma vez que desafia questões ligadas a institutos basilares do direito de família, tais como maternidade, paternidade, filiação e responsabilidade parental.
Sabemos que o Direito, para ser eficaz, deve amparar as transformações sociais trazidas pelo desenvolvimento tecnológico.

Dessa forma, mostra-se necessário analisar como o nosso sistema jurídico trata (ou não) a questão. Nesse contexto, o Direito Comparado, por se apresentar em estágio legislativo bem mais avançado e, por conta disso, oferecer maior número de casos submetidos à tutela judicial, poderá ser utilizado como um importante instrumento de auxílio na elaboração de leis que dêem tratamento adequado e efetivo à maternidade de substituição no Brasil. E isso se dará, principalmente, por meio da adaptação das soluções estrangeiras à nossa realidade jurídico-social.

A metodologia de pesquisa utilizada foi basicamente doutrinária, nacional e estrangeira, jurisprudência pátria em relação ao tema (acerca da qual conclui-se ser escassa), e também entrevistas com médicos especializados em genética e reprodução assistida.

Os principais objetivos foram: debater sua repercussão para o direito de família, apurar a freqüência com a qual a prática ocorre; verificar, ainda, se existe a celebração de alguma espécie de contrato entre os envolvidos; apurar a concessão de autorizações especiais pelo conselho regional de medicina; adaptar as soluções estrangeiras para o Brasil, e talvez, propor diretrizes legislativas.


2. ASPECTOS MÉDICOS DA PRÁTICA

A doação temporária de útero é realizada por médicos especializados em reprodução humana. A exemplo, desde 1991, Dr. Magarinos realiza, sem a intervenção de outros médicos, todas as etapas das técnicas de reprodução assistida em seus pacientes. Para compreensão dos aspectos médicos da doação de útero, recorreu-se a uma entrevista com o médico e às informações disponibilizadas em seu sítio na Internet.

A técnica da doação temporária de útero é indicada para mulheres com algum problema médico que impeça ou contraindique a gestação, tal como perda de útero, miomas grandes, malformações, sinéquias inoperáveis, endométrio que não se desenvolve, útero infantil, Rh negativo com sensibilização ao fator Rh, doenças transmissíveis ao bebê durante a gravidez (AIDS, Hepatite C, HTLV I e II) e etc.

Com essa técnica, a mulher pode ter um filho formado a partir de seu óvulo e do espermatozóide do marido, ou seja, pode ser a mãe genética de seu filho, ocorrendo a gestação no útero de uma mulher doadora. Se a mulher não for capaz de produzir óvulos férteis, ou o marido ou companheiro não for fértil, o casal pode recorrer a uma doadora de óvulos ou doador de sêmen (fecundação artificial heteróloga).

Para obter os óvulos, o médico recorre à estimulação ovariana por meio de hormônios e, com isso, muitos óvulos são produzidos ao mesmo tempo. A estimulação ovariana, se por um lado aumenta muito as chances de êxito, também representa o principal risco nos tratamentos. A dose e o tipo de hormônio a ser utilizado em cada paciente devem ser cuidadosamente estudados. Dentre os riscos da estimulação ovariana, o mais temido é a Síndrome de Hiperestimulação Ovariana (OHSS ou SHO), que nos casos mais severos pode levar ao óbito, o que ocorre em 0,5% das mulheres que desenvolvem a OHSS.

Uma vez obtidos os gametas (óvulo e espermatozóide), o médico aplica a fertilização em laboratório para unir as duas células e formar o zigoto (primeira célula do corpo humano, com o material genético completo para o desenvolvimento e nascimento de um indivíduo). O zigoto, na etapa seguinte, é transferido para a doadora de útero onde se desenvolverá até o nascimento.

Na transferência de embriões para o útero, são observados alguns critérios bastante delicados. A transferência de um embrião não garante uma gravidez, sendo menor a possibilidade de sucesso quanto maior for a idade da mulher. Por isso são transferidos mais de um embrião para o útero, mas não muitos. É preciso calcular o número adequado a uma razoável probabilidade de êxito. Quanto maior o número de embriões transferidos, maior a possibilidade de uma gravidez múltipla (gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos...).  Por isso as clínicas investem em novas técnicas para seleção dos melhores embriões, o que permite a redução do número de implantados e aumento da taxa de sucesso.

A seleção dos embriões pode ser feita também por diagnóstico genético pré-implantacional (PGD). O PGD consiste em remover 1 ou 2 células de cada embrião (geralmente 3 dias após a coleta dos óvulos), com o auxílio de um microscópio de micromanipulação, para estudos genéticos, antes de serem transferidos para o útero.
O objetivo é selecionar embriões com menor risco de gerar crianças deficientes, bem como diminuir a taxa de abortos de causa genética. Alguns casais, no entanto, procuram a técnica para selecionar o sexo do seu futuro bebê. O Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução nº 1.358 de 1992, que estabelece Normas Éticas, a serem seguidas por profissionais médicos, que atuam em reprodução assistida, considera a técnica antiética, pois acarreta o descarte de embriões do sexo indesejado. O Dr Magarinos sugere nesse caso que se doem os embriões do sexo indesejado para outros casais inférteis, ou mesmo para pesquisas após terem permanecido congelados por pelo menos 3 anos.

Portanto, além dos riscos corridos pela doadora de óvulos na estimulação ovariana por hormônios, há a questão ética do descarte de embriões. O desenvolvimento das técnicas de fertilização reduz cada vez mais o número de embriões necessários para uma gravidez bem sucedida, reduzindo consequentemente o descarte. No entanto, mesmo com a ICSI, alguns embriões não chegam a ser transferidos.

Quanto ao embrião in vitro, não implantado no útero, pequena tem sido sua valoração como vida humana pelo direito brasileiro. O Supremo Tribunal Federal, em 29 de maio de 2008, em julgamento da ADI 3510 que trata da constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança sobre pesquisas científicas com células-tronco, decidiu que o referido artigo, que permite a pesquisa científica com embriões humanos, não merece reparos. O relator Carlos Ayres Britto afirmou que a vida humana só começa com a nidação, ou seja, com o implante do embrião no útero da mãe.
Só aquele implantado no útero materno pode vir a nascer e somente neste caso pode ser chamado de nascituro. Além disso, enquanto não tem cérebro formado, o embrião representa uma realidade distinta da pessoa natural, diz o relator. Percebe-se a discussão de três teorias na ADI 3510: uma que afirma que a vida humana começa na concepção (leia-se fecundação), outra que elege o momento da nidação (sexto ou sétimo dia após a fecundação) e uma terceira que reconhece a vida humana somente quando se inicia a atividade cerebral (décimo quarto dia de gestação). Ayres Britto simplesmente descarta a primeira acolhendo as outras duas teorias como igualmente aceitáveis para a tarefa de liberar as pesquisas com células-tronco.

A doação de útero não estava diretamente em questão no julgamento do STF sobre a lei de biossegurança. No entanto, o excedente de embriões produzidos na fertilização in vitro deixou de ser um problema depois do julgamento da ADI 3510. Resta-nos, agora, a análise das outras questões éticas e jurídicas levantadas pela técnica da doação de útero.



3. ADMISSIBILIDADE DA GESTAÇÃO POR 3º



3.1 – Possibilidade Científica e Admissibilidade Jurídica

O Brasil, assim como muitos países que possuem meios técnicos e qualificação específica, incorporou-se à tecnologia da chamada reprodução artificial assistida.

Apesar do seu uso cada vez mais recorrente, principalmente a partir do nascimento do primeiro bebê de proveta em 1978, e do domínio dos meios técnicos e científicos necessários para a efetivação da maternidade de substituição, essa prática encontra verdadeiros óbices para sua realização nas lacunas do ordenamento jurídico.

Na realidade brasileira, constata-se que, atualmente, a grande dificuldade para se recorrer a avanços biotecnológicos como este reside muito mais em questões de ordem jurídica que no domínio da técnica necessária para o procedimento pelos profissionais.
Entretanto, tendo em vista que a maternidade de substituição gera conseqüências fáticas – o nascimento de uma nova criança, mister se faz que o Direito cumpra seu papel e regule essa nova realidade social.

No Brasil, a escassa regulamentação do assunto se limita à Resolução n.º 1.358/92, Seção VII do Conselho Federal de Medicina, na qual se determinada que sua utilização deve ser condicionada à existência de um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética, devendo ser a doadora temporária do útero parente até segundo grau da doadora genética. Além disso, impõe-se ainda que tal prática não tenha caráter lucrativo ou comercial.

Como resolver, então, questões de cunho ético, moral e social que se descortinam diante desse novo panorama? Como garantir à criança o direito de conhecer seu patrimônio genético? Pode a mãe receptora requerer alimentos? E se vier a sofrer algum dano, ou mesmo falecer, em decorrência da gestação, poder-se-ia responsabilizar o “locatário”? Como evitar que isso resulte em uma exploração das mulheres mais pobres?
Enfim, há indagações ainda não abarcadas pelo Direito e que merecem uma atenção especial do legislador pátrio, posto que as consequências desse procedimento tornaram-se uma realidade.
Aspecto bastante polêmico com relação a este assunto é o que diz respeito à chamada procriação artificial post mortem. Neste debate acirrado, muitos se posicionam contrários a tal prática sob a alegação de que a criança nascida careceria de um pai, já que o mesmo já estaria falecido; não poderia desfrutar do convívio com o mesmo; e, principalmente, não poderia ser registrado como tal.

Do outro lado, no entanto, os defensores argumentam que a questão da filiação seria facilmente resolvida pelo simples consentimento deixado pelo de cujus, ainda em vida, demonstrando o seu intuito de reprodução quando do armazenamento de seu sêmen. Na ausência de qualquer declaração neste sentido pelo doador do sêmen o médico deverá ser responsabilizado, inexistindo, nesse caso, a filiação.

Surgem então problemas relativos aos direitos sucessórios.  Essa criança nascida de uma reprodução assistida post mortem possui direito à herança? E como proceder se a mesma foi partilhada entre os herdeiros? Costuma-se afirmar que apenas a criança gerada com o consentimento do de cujus possuiria direito à herança. E, sendo assim, ainda que finda a partilha, o Direito pátrio apresenta solução para o caso: aplicar-se as mesmas regras utilizadas nos casos de reconhecimento de filiação por investigação de paternidade post mortem. Dessa maneira, não apenas é possível garantir à criança o vínculo de paternidade, como também lhe é assegurado o direito à herança deixada pelo seu progenitor por meio de uma petição de herança com nulidade de partilha, observada a prescrição quanto a direitos patrimoniais.

Cumpre tratar, ainda que brevemente, da utilização do procedimento por casais homossexuais. Impossibilitados de gerar sua própria prole, recorrem de maneira cada vez mais frequente a este método e, amparados pelo anonimato – muitas vezes solicitados pelo casal que tem o projeto parental, outras até mesmo imposto pela própria clínica que realizada a reprodução assistida – logram êxito sem precisar, para tanto, vencer barreiras do preconceito. Assim, é possível que casais homossexuais valham-se da técnica até mesmo em países como a Índia, onde a homossexualidade ainda é ilegal.

Destarte, posiciona-se favoravelmente ao uso da “maternidade de substituição” também por casais homossexuais que, em razão de sua opção sexual, não podem gerar filhos de maneira natural.
Por fim, não se pode olvidar de tratar da problemática relacionada à família monoparental. Muito comum nos dias de hoje, a chamada “produção independente” nada mais é do que uma pessoa solteira que decide ter um filho para criá-lo sozinha, sem o auxílio de um parceiro.

Parece plausível que indivíduos solteiros possam valer-se  desse método. O que se costuma questionar neste caso é a questão do melhor interesse para a criança, entendendo muitos que o desenvolvimento psíquico daquela depende da estrutura familiar, a qual deveria ser formada pela figura de um pai e uma mãe. Todavia, tal entendimento encontra-se ultrapassado, sendo impossível negar o status de família também a diversos núcleos de convívio social, tais como a união estável, sobrinhos que moram com tios, irmãos que vivem juntos e, logicamente, as famílias monoparentais.

Não há fundamentos que afirmem que a família monoparental possa ser  prejudicial ao desenvolvimento da criança. O único cuidado que se deve ter é para que isso não represente uma conquista pessoal, devendo-se sempre primar pelo bem-estar da criança, garantido constitucionalmente (Artigos 227, 229, CRFB).

Diante do exposto, urge que o Direito regule todas essas novas situações, estabelecendo limites para a utilização das técnicas de reprodução assistida, levando-se sempre em consideração valores éticos, morais e sociais.


3.2  Natureza jurídica da maternidade substituta.

Há muita polêmica a respeito da natureza jurídica da Maternidade de Substituição. Atualmente, nos EUA e na Índia a técnica é aceita e realizada por meio de Contrato de Gestação, no qual a mãe substituta obriga-se a entregar o bebê aos pais que idealizaram o projeto parental, logo após o parto.

Este acordo é criticado, uma vez que constitui uma ameaça à dignidade da criança, pois se mesmo antes do parto ela já é considerada uma pessoa em desenvolvimento, não pode, portanto, ser objeto de um contrato, pois tem direitos que devem ser respeitados.
É prejudicial também à mãe substituta, pois, mesmo se esta não doou o material biológico (óvulo), nos ordenamentos jurídicos pesquisados, mãe é aquela que gera a criança e, portanto, ela não poderia renunciar ao seu estatuto jurídico de mãe, pois representa um direito familiar, de relevância pública, sendo assim, indisponível.

Caso a mãe substituta seja casada, seu marido também renunciaria ao estatuto jurídico de pai, já que presume-se dele a paternidade da criança nascida de sua esposa.
Vale ressaltar ainda uma hipótese não definida no contrato: se a criança nascer com alguma doença ou deficiência, poderia ser repudiada pelos pais que a idealizaram, uma vez que desejaram uma criança perfeita; e a mãe substituta também poderia não aceitá-la. Logo, no caso de um conflito negativo, expõe-se a perigo o melhor interesse da criança fruto deste ajuste.
Há outra corrente de estudiosos que consideram a Maternidade de Substituição um Instituto, comparado à Adoção. Contudo, diferente desta, em que privilegia-se o interesse da criança, de cujo poder familiar os pais foram privados; na maternidade de substituição busca-se satisfazer o interesse do casal infértil ou futuros pais. Portanto, não há como defender o interesse de uma criança que não foi sequer gerada.


4. Conflito e atribuição de maternidade.

Superadas as questões preliminares sobre a possibilidade científica e jurídica da maternidade de substituição, assim como os seus modos de execução e sua natureza jurídica, cumpre enfrentar o tema do conflito de maternidade.

A doutrina traz possibilidades distintas de ocorrência do dissenso: o conflito positivo e o negativo. A primeira ocorre quando tanto a idealizadora da maternidade por substituição, que pode ser também a cedente do óvulo ou não, quanto a cedente do útero, também chamada parturiente, manifestam o desejo de assumir a maternidade da criança e criá-la como se filho fosse. Outra se verifica quando os mesmos sujeitos supracitados optam, simultaneamente, por negar a maternidade a uma criança vindoura, idealizada por uma pessoa, e gestada por outra.
Historicamente, a doutrina e a jurisprudência pautavam-se na presunção explicitada pelo brocardo latino mater semper certa est (a mãe é sempre certa), pois sua determinação se dava pela gravidez e parto. Contudo, ante a possibilidade da gravidez por substituição, essa presunção deixa de prosperar totalmente, impondo-se novos critérios de aferição da maternidade.

O primeiro critério é a atribuição da maternidade à gestante e parturiente, ou seja, a quem dá à luz uma criança. Decorre de longo entendimento jurídico, cuja influência pode até mesmo ser depreendida da leitura dos artigos 52, parágrafo1º e 54, parágrafo 7º, da Lei 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos).
De fato, ainda hoje essa atribuição é a adotada, inclusive tendo em vista que a maternidade de substituição ainda é exceção. Contudo, em que pese ser notório que o ordenamento pátrio tenha adotado esse posicionamento, no próprio Código Civil se encontra abertura para ressalvas, a exemplo do artigo 1.615.
O segundo critério é o biológico, mais precisamente o genético, que atribui a maternidade à doadora do óvulo, aquela cujo material genético será herdado pelo infante. Essa hipótese é a utilizada comumente na justiça para se aferir a paternidade. São os casos dos famosos “testes de DNA”, que hoje podem também ser úteis na determinação da maternidade.

A jurisprudência optou por esse parâmetro em algumas oportunidades, como no julgado abaixo, proveniente de Minas Gerais:
“Indenização – Danos morais – Pedido sucessivo – Investigação de troca de bebês – Hospital – Exame de DNA – Pagamento de despesas – Cumulação de pedidos – Erro essencial de fato – Teoria da actio nata – Prescrição – Não-ocorrência – A ação que busca investigar filiação, maternidade e paternidade é imprescritível. É possível a cumulação de pedido sucessivo cominatório com pedido indenizatório. Havendo erro essencial quanto a fato que a parte ignorava, referido erro impede o curso do prazo de prescrição da ação. Segundo a teoria da actio nata, somente após revelado o fato desconhecido que mantinha a parte em erro substancial é que tem início a contagem do prazo de prescrição da ação.”

A crítica à utilização desse critério está no reflexo do próprio método de fertilização adotado, homólogo ou heterólogo, ou seja, de acordo da técnica aplicada, estaremos de antemão atribuindo a maternidade a provedora do óvulo, independentemente de ser a idealizadora do projeto familiar ou a cedente do útero. Contudo, ante a análise do direito comparado entende que na hipótese de fertilização heteróloga conjugada à maternidade de substituição, ou seja, além de ceder o útero a gestante cede também o óvulo, a ela é atribuída a maternidade independemente do projeto parental de outra. Há que se ressalvar que não se tem notícia também, de hipótese em que uma mulher cede um óvulo e outra o útero, para que uma terceira assuma o papel materno após o parto.

O terceiro critério é o da afetividade. Por esse critério, atribui-se a filiação à relação sócio-afetiva estabelecida entre duas pessoas, sendo uma delas a dotada de animus maternal. Esse critério, embora a primeira vista mais apropriado, tem apuração prática mais difícil na ocorrência de um conflito. Pois, havendo disputa entre duas supostas mães, que pode ocorrer tanto no período gestacional quanto logo após o parto, como estabelecer quem possui o vínculo sócio-afetivo com o bebê? Nesse caso, permanece a dúvida se devemos atribuir essa afetividade aquela que planejou o bebê, e depositou confiança na gestação por uma terceira, ou se devemos reconhecer o apego daquela que acompanhou o desenvolvimento de uma vida em seu útero. Situação que causa igual perplexidade seria o conflito negativo, pois como avaliar afetividade se ambas as mães em potencial rejeitam a vida em formação ou o bebê recém-nascido em questão?

No Direito comparado observa-se que a maioria dos países atribui a maternidade à gestora. Porém, a justificativa não tem fundamento, em última análise, no critério de escolha legal da parturiente, mas sim na nulidade de um eventual contrato em que a gestante tenha se comprometido, onerosamente ou não, a ceder seu útero para gerar uma criança. É o que se verifica, a título exemplificativo, na Nova Zelândia, Bulgária, Inglaterra, França, Espanha e Argentina, além de Portugal, este último com algumas ressalvas às hipóteses em que não há onerosidade na cessão do ventre.

Por fim, podemos concluir que todos os critérios até o momento não se demonstraram satisfatórios a atribuir a maternidade a uma das mulheres envolvidas no conflito, seja ele positivo ou negativo. Nesse caso, nos parece mais arrazoado que seja feito um juízo que conjugue os critérios acima, a luz do princípio da dignidade da pessoa humana, nesse caso explicitado pelo atendimento ao melhor interesse da criança.

A aferição do melhor interesse, objeto de fundamentações judiciais em outras esferas, e positivada no artigo 43, da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e artigo 1.625 do Código Civil, deve levar em conta o importante fator de que, via de regra, a cedente do ventre, gestante, não possuía, até a concepção, o menor ideal de mãe. Muitas das vezes, pelo contrário, tinha convicção que não desejava a maternidade e por isso ofertou seu útero à terceiros, no gesto altruísta de possibilitar àqueles concluir o sonho parental. Obviamente, essa ausência de animus inicial deve ser sopesada com o maior benefício à integridade psicofísica da criança, enquanto pilar de sua dignidade.
A ponderação supramencionada não se distancia da adotada pela Corte Suprema de Nova Jersey no caso concreto denominado Baby M., no qual o valor preponderante para determinar a que família seria entregue o bebê foi aquela que tivesse melhores condições, não apenas econômicas, mas também sociais, de educá-lo.


4.1 Experiências do direito comparado

Em que pese a maternidade de substituição não ser prevista pela legislação pátria, vários outros países dispõem de dispositivos legais coercitivos acerca do tema, relacionando-o, inclusive não só com o ramo cível o Direito, mas também com  as esferas administrativa e, até mesmo, criminal.

Exemplo mais patente é o tratamento dado à tal prática pela legislação alemã. Nesse país, a gestação por outrem é vedada pela Lei de Proteção aos Embriões, que, em seu art. 1º, tipifica como crime a conduta daquele que proceder à fecundação artificial em mulher que esteja disposta a ceder definitivamente o seu filho a terceiros após o nascimento, podendo a pena ser desde multa até prisão por três anos.

Na Espanha, quanto à maternidad subrogada, o direito espanhol considera ilícito todo contrato de gestação no qual uma mulher renuncie à maternidade em favor de outrem, levando em conta que o corpo humano está fora do comércio jurídico e não pode ser objeto de contrato. Assim, tal contrato é cominado de nulidade com base nos artigos 1305 e 1306, c.c. artigos 1271 e 1275, todos do Código Civil espanhol.

Desse modo, tal contrato não poderá ser executado diante da nulidade da qual é portador, com expressa previsão no artigo 10-1 da Lei nº 35/1988, sendo a solução para resolver a questão da maternidade dada pelo artigo 10-2, da mesma lei, ou seja, o parto. Em relação à paternidade, o artigo 10-3 da mesma lei ressalva que ela poderá ser reclamada de acordo com as linhas gerais de reconhecimento ou estabelecimento. Sendo a mulher gestante casada, o parto também influenciará a paternidade para o fim de estabelecer que seu marido será o pai jurídico da criança, ainda que o sêmen utilizado tenha sido do ‘pai intencional”.
Na França e em Portugal também existe vedação expressa em leis específicas sobre reprodução humana assistida, e também nos seus respectivos Códigos Civis.

Entretanto, outra posição é adotada pelos Direitos inglês e norte-americano. Nos EUA, a partir da década de 80, alguns Estados constituíram comissão para estudar e apresentar sugestões sobre a técnica da maternidade-de-substituição, sendo que no ano de 1987 houve julgamento reconhecendo a constitucionalidade de tal prática – o mencionado caso do Baby M. Todavia, entidades médicas norte-americanas recomendam que as práticas de reprodução assistida somente sejam realizadas em favor de casais estéreis, o que representa a não-aceitação da técnica por mera conveniência.

Acerca da maternidade-de-substituição, o Direito Inglês, com o Surrogacy Arrangements Act, de 1995, proibiu peremptoriamente tal prática de forma remunerada, prevendo sanções para aqueles que descumpram a norma. Por outro lado, admitiu implicitamente sua utilização quando realizada sem qualquer remuneração.
No que se refere à filiação, a sub-rogada é a mãe legal. Dessa forma, o modo pelo qual os pais intencionais obtêm judicialmente o direito a registrar a criança é o chamado Parental Order - um instrumento jurídico semelhante à adoção, sendo caracterizado por ser uma versão mais simples e rápida. No entanto, a questão não é tão simples.

A Lei de 1990 instituiu mecanismo de controle realizado pelo Human Fertilization and Embriology Authority, que necessariamente verifica e fiscaliza tais práticas, determinando quais são os ‘pais jurídicos’ da criança por meio da ordem parental (parental order), ou seja, o casal que manifestou consentimento em procriar através de tal técnica. Pode-se concluir que tal restrição foi instituída de modo a proibir qualquer criação de embriões fora do corpo humano, bem como a guarda de material fecundante sem a licença concedida pela autoridade instituída em 1990. Daí decorre que, pelo direito inglês, toda a prática relacionada à maternidade-de-substituição, e também fertilização in vitro de material de terceiro doador, somente possa ser realizada em clínicas licenciadas, sob pena de ser considerado o pai jurídico da criança aquele que doou o material fecundante  – o que se mostra em total discordância com proteção à intimidade do doador, vigente no direito brasileiro.


5. Vazio normativo e o papel do CRM 


Nos últimos anos o desenvolvimento tecnológico e das Ciências biomédicas vem aumentando consideravelmente. Todo esse desenvolvimento traz implicações para o indivíduo e para a sociedade de um modo geral. As mudanças são notadas e influenciam não somente as relações privadas, mas trazem consequências sociais onde é necessário ter como base paradigmas de dignidade humana, moral social e ética a fim de que se possa lidar de uma maneira adequada com o desenvolvimento para que ele não traga conseqüências prejudiciais para a sociedade atual e vindoura.

O desenvolvimento tecnológico e biomédico demonstra que o direito não é capaz de dar sempre respostas satisfatórias para todas as novas questões que emergem de tantos fenômenos que modificam a sociedade. Pois há, na verdade, uma ambivalência trazida com as experiências e avanços tecnológicos, pois da mesma forma que trazem benefícios para o ser humano podem por outro atacar diretamente o direito a vida e a procriação.

A maternidade de substituição não está devidamente regulamentada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Há um verdadeiro vazio normativo que gera uma insegurança e acaba por tornar mais escasso o número de pessoas que se utilizam desta técnica a fim de terem satisfeito o seu projeto parental. 

A única regulamentação existente a respeito da maternidade de substituição vem do Conselho Regional de Medicina. Há projetos de lei que pretendem a regulamentação da prática, mas até a presente data nada foi devidamente regulamentado para acabar com a insegurança da ausência normativa.

A Resolução 1358/92 do CFM autoriza o médico a praticar a gestação por substituição nos casos em que um problema de saúde impeça ou contra-indique a gestação da mãe que tem o projeto parental. Além disso, a doação de útero deve ser não lucrativa ou não comercial e a doadora deve ser parente de até 2º grau com aquela que pretende ser mãe, sendo os demais casos sujeitos a aprovação do CRM.

O Conselho Regional de medicina pretende com isso evitar a prática indiscriminada dessa espécie de reprodução assistida e a comercialização da gravidez. Ao impedir que a maternidade de substituição se realize entre mulheres que não sejam parentes, pretende-se que não haja a colocação de um preço em uma gestação que deve ser de afeto.
Porém, essa restrição do parentesco até o segundo grau acaba também, em muitos casos, por impedir a pratica em determinadas situações. Diz a resolução do CRM que em casos excepcionais poderá haver a autorização do órgão para casos em que a mãe substituta não seja parente dos pais que pretendem a realização do projeto parental. 

Entrevista realizada com o Dr. Antônio Eugenio Magarinos Torres do Centro Médico Richet, Barra, RJ, restou comprovado que há uma excessiva burocratização que acaba impedindo a realização do procedimento. O médico chegou a tentar submeter casos ao Conselho quando não havia o parentesco necessário entre a doadora do útero e a mãe que possui o projeto parental, mas a burocracia não possibilitou o procedimento da maternidade substituta.
 
A ausência normativa e as dificuldades impostas pelo Conselho Regional de Medicina acabam impedindo a prática da maternidade de substituição e de certa forma incentivando a clandestinidade, pois na verdade a maternidade de substituição acaba ocorrendo à margem da existência de regulamentação específica.

Diante dos fatos, é forçoso reconhecer a necessidade de regulamentação da maternidade de substituição no ordenamento jurídico brasileiro a fim de que a prática possa ser realizada de acordo com parâmetros estabelecidos evitando-se assim a clandestinidade e dando segurança jurídica às gestantes e às pessoas que pretendem a realização do projeto parental.
As técnicas de reprodução humana assistida são um grande marco da evolução do biodireito. 

Cada vez mais as sociedades de diversos países do mundo vêm se utilizando de tais técnicas para verem satisfeitos seus desejos de procriação e realização familiar. Na maternidade de substituição terceiras pessoas se encontram envolvidas no ato de geração de um novo ser. Portanto, novos paradigmas precisam ser analisados e confrontados sem nunca se perder de vista a dignidade da pessoa e a afetividade como base de qualquer relação familiar e humana.
Desta forma, não há ainda definição a respeito da natureza jurídica desta técnica, constituindo-se de elementos diversos, sendo assim um fato híbrido e inédito no mundo jurídico.




fonte> www.ambito-juridico.com.br

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Doação de Óvulos x Empréstimo de Útero, o primeiro é aceito e o segundo rejeitado incompreensívelmente:



Por que a não aceitação da sociedade sobre esse fato?  Especialmente quando a doação de óvulos é largamente praticada nas clínicas de fertilidade em sistema de “troca de favores” com uma boa margem de aceitação social?  Ou seja, a sociedade aceita facilmente que uma mulher doe seu óvulo para que outra engravide e tenha um filho que é biologicamente da doadora, no entanto tem dificuldade em aceitar que uma mulher tenha o próprio filho biológico, se esse necessitar “crescer” em outro útero?  

A lei brasileira define que a doação de óvulos não pode também ter fins lucrativos, no entanto, se uma mulher precisar fazer um tratamento pra fertilidade e tiver condições de doar óvulos (idade jovem e boa fertilidade) recebe o seu tratamento de graça ou a custos muito reduzidos em troca da doação, o que não podemos negar que envolve um “favor financeiro”.  Porém a sociedade aceita isso como algo positivo.  Ao se entrevistar qualquer doadora, o entendimento da mesma é de que não está realizando um comércio, mas sim, ajudando uma outra mulher a realizar o seu sonho, enquanto recebe o mesmo em troca.  O entendimento desse sistema tanto por parte de quem já praticou, quer doadora ou receptora, quanto pelas outras mulheres em tratamentos diversos para engravidar é positivo.  No entanto, a maioria não aceita bem a idéia da mãe substituta, especialmente quando envolve alguma troca financeira.
O procedimento de doação de óvulos possui mais implicações ao longo prazo do que o útero emprestado.  No caso do útero substituto, uma vez que a criança nasceu, é entregue a mãe definitiva que assumirá totalmente a criança.  A mãe substituta terá cumprido sua missão e voltará a cuidar de seus próprios filhos, agora com os recursos extras recebidos por seu bom trabalho e a satisfação de ter ajudado outra mãe.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Barriga de Aluguel - Obrigação Lícita?

INTRODUÇÃO
Na sociedade hodierna muitos avanços tecnológicos estão surgindo, tornando quase tudo possível. Uma das áreas que mais tem evoluído é a medicina reprodutiva, abrindo perspectivas ao problema da esterilidade humana, em um desafio ao ordenamento jurídico, o qual é dominado pelas concepções clássicas, especialmente no que tange à filiação.
A curiosidade científica e a busca incessante de novas descobertas nas ciências da saúde sempre foram objeto de preocupação para a humanidade. Daí, a necessidade de estabelecer limites precisos no desenvolvimento da ciência biomédica, tendo em vista que, em nome desse desenvolvimento, regras básicas de comportamento ético foram desrespeitadas.
O escopo de nossa análise neste trabalho será o aspecto obrigacional, advindo da técnica das mães de substituição, a qual está evoluindo para a chamada barriga de aluguel, colocando o homem como objeto contratual.
No que tange ao aspecto jurídico, a questão que se propõe a presente pesquisa é a de responder se a barriga de aluguel carateriza-se como uma obrigação lícita ou não.
Ø Ética Mutante:
Através dos avanços da medicina, quase tudo tornou-se possível quando o desejo é ter um filho. A questão que se levanta é a de definir a fronteira entre o avanço da tecnologia e a questão ética e jurídica desse caos evolutivo.
Umas das questões que levanta grande discussão e que diz respeito a um forte aspecto social versa sobre o direito de um casal investir importantes recursos financeiros para ter um filho, envolvendo questões de cunho ético psicológico, religioso e jurídico, enquanto, á sua volta estão inúmeras crianças abandonadas ou vivendo em miséria absoluta. Não seria mais ética e socialmente justa a adoção? Em um país como o Brasil, a resposta é positiva.
A medicina reprodutiva e suas ousadias representam a superação da infertilidade para boa parte dos casais. Uma das técnicas mais utilizadas é a Reprodução Assistida (RA), por nós conhecida como “barriga de aluguel” e também chamada de “útero emprestado”, ou o termo mais técnico no mundo jurídico, “mães de substituição”.
Mesmo nos tempos atuais, em que a sociedade exerce um papel controlador mais efetivo, o desenvolvimento científico muitas vezes encobre violações de princípios éticos, e não raro humanitários, em nome da high – tech na ciência biomédica.
Tal tema encerra questões delicadas como a sexualidade, o matrimônio e a reprodução, permanecendo como um dos dilemas éticos mais atuais da humanidade.
Essa técnica significa uma nova realidade, bem como perplexidades, suscitando um grande debate sobre as fronteiras da ética e do progresso científico.
A questão colocada como escopo de nossa análise é o fato da tecnologia ter avançado mais que o ordenamento jurídico, surgindo como um impasse tanto para os casais, que querem realizar o sonho de ter um filho, quanto para os profissionais que atuam nessa área.
O escopo de nossa discussão não será a respeito da técnica de reprodução assistida em um geral, mais sim da questão das mães de substituição, as quais tendem a evoluir para as chamadas barrigas de aluguel, colocando o homem como objeto de contrato.
Atualmente, os limites dependem mais da legislação de cada país que da modernidade técnica, posto que a procriação artificial desafia as leis e os princípios éticos e morais de médicos e pacientes envolvidos no mundo da geração – laboratório.
Diante das várias possibilidades da tecnologia também sobram dúvidas, como as que seguem:
§ A mulher que cedeu o útero tem direito sobre a criança?
§ É ético usar o esperma de um morto?
§ É aceitável escolher o sexo do bebê?
A polêmica parece não ter fim, pois enquanto as leis caminham a passos lentos, os advogados, assim como médicos, teólogos e uma nova categorias, os bioeticistas, buscam respostas, discutindo a bioética.
A esterilidade ou infertilidade, vista como um “defeito” biológico, leva à discriminação que alimenta o sentimento de inferioridade e de culpa por parte da mulher.
Ø Aspecto Médico:
Tal técnica consiste em apelar a uma terceira pessoa para assegurar a gestação, quando o útero materno estiver impossibilitado de desenvolver normalmente o ovo fecundado, ou quando a gravidez apresentar risco para a mãe.
O fato de haver a participação de uma terceira pessoa implica em uma renúncia à intimidade da concepção e sua privacidade.
A partir do conhecimento adquirido com a experimentação animal e a evolução do conhecimento científico na área reprodutiva humana, houve uma evolução da inseminação artificial às atuais técnicas de fertilização in vitro com a transferência de embrião.
Tal matéria caracteriza-se como objeto de controvérsia, devido aos problemas éticos, sociológicos, psicológicos, jurídicos, bem como financeiros, provocados pelo tema. A título de medicina, contudo, a questão não promove maiores indagações.
É indicada para mulheres portadoras de deficiências adquiridas ou de nascença, as quais ficam impossibilitadas de levar a termo uma gravidez.
Os embriões são coletados da mãe e transferidos para a mãe de substituição durante o ciclo natural ou induzido.
Tendo em vista os numerosos problemas éticos e legais suscitados pelo empréstimo do útero, o procedimento das mães de substituição ainda não se generalizou.
Tal procedimento subdivide-se em duas hipóteses distintas:
§ mãe portadora: é aquela que apenas “empresta” seu útero; é uma mulher fértil, a qual recebe em seu útero um ou vários embriões obtidos pela fecundação in vitro, a partir dos óvulos e dos espermatozóides do casal solicitante;
§ mãe de substituição: além de “emprestar” seu útero, doa seus óvulos; é uma mulher fértil que será inseminada com o esperma do marido da mulher que não pode conceber; caso ocorra a gravidez, ela gestará uma criança geneticamente sua e, após o nascimento, a dará ao casal.
Ø Aspecto Jurídico:
Tal tema interfere em um conjunto de fatores alheios à maternidade “natural”, gerando condutas opostas a esta prática.
Esta técnica desafia o que resta do núcleo tradicional, o qual é visto como modelo.
A celeridade da evolução do conhecimento na área da reprodução humana exige da sociedade e dos governos envolvidos uma permanente vigilância a respeito da questão.
São muitas as questões colocadas aos juristas: desde a definição de um estatuto do embrião até a proteção de bens essenciais, como a unidade familiar, a salvaguarda do valor da procriação e a licitude dos meios e dos fins que caracterizam suas aplicações no campo científico.
A intervenção humana nos processos reprodutivos, rompendo as relações biológicas entre os seres humanos, exige uma permanente e severa vigilância no sentido de impedir a generalização e a banalização da procriação tecnológica.
Há um temor de que tal prática aumente a demanda por mães de aluguel, ocasionando a exploração de mulheres pobres, bem como as do terceiro mundo, caracterizando uma atitude imoral e ilegal.
Os limites entre a autodeterminação da pessoa e a sua plena satisfação, o desenvolvimento científico na área da reprodução assistida e a ética da intervenção nos processos biológicos da reprodução humana, cada vez tornam-se mais estreitos, exigindo uma pronta resposta social para contê-los.
No campo jurídico, as posições tradicionais continuam prevalecendo sobre os avanços científicos.
Assiste-se a uma crescente demanda por regulamentação, com a finalidade de garantir a proteção dos valores fundamentais da pessoa; entretanto, essa proteção mostra-se inadequada e insuficiente.
No Brasil, até o presente momento, não há nenhuma regulamentação legislativa sobre o assunto. Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n.° 2.855, de 1997, de autoria do deputado Confúcio Moura, o qual regulamenta a utilização das técnicas de procriação artificial.
Tudo que é feito até então está baseado na Resolução n.° 1.358, de 1992, do Conselho Federal de Medicina – CFM, a qual permite a utilização da gravidez de substituição, desde que haja impedimento físico ou clínico para que a mulher, doadora genética, possa levar a termo uma gravidez. Entretanto, a prática é restrita ao ambiente familiar, com o objetivo de impedir qualquer caráter lucrativo ou comercial na relação estabelecida.
Apesar da não existência de legislação sobre a matéria, a Constituição Federal previu a ocorrência de legislação ordinária para tratar da matéria, vedando “todo tipo de comercialização”, ex vi do art. 199, § 4° - CF/88, ipsis litteris:
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
§ 4° - A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização. (grifamos)
Mas há quem afirme que a utilização do útero não se encontra incluída no referido dispositivo constitucional.
O autor Eduardo de Oliveira Leite assevera que a barriga de aluguel não está incluída no referido dispositivo constitucional, tendo em vista que o procedimento não é assimilável ao transplante de órgão, nem à pesquisa. “Também não ocorre remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas”. Ele afirma que se não há locação, afasta-se a hipótese de contrato.
Afirma-se que a omissão constitucional permite o emprego de todas as tecnologias reprodutivas, sendo tal omissão devido ao fato da procriação artificial não estar institucionalizada na sociedade, continuando a gerar dúvidas e perplexidades.
O primeiro instrumento a tratar do assunto foi o Código de Nuremberg, de 1946, trazendo recomendações internacionais sobre a ética nas pesquisas científicas em serem humanos. Travou-se, então, um paradigma que vai atravessar civilizações: ciência versus ética.
A legislação civil brasileira não traça normas disciplinadoras, sendo que o Código Civil vindouro, que entrará em vigência em janeiro de 2003 não contém nenhuma norma sobre a matéria. Duas emendas foram apresentadas, das quais não se sabe notícias.
A doutrina entende que a mãe de substituição, ou mãe de aluguel, só deve ser admitida aos casais inférteis, que constituam ambiente adequado à criação e à educação de filhos.
Como não há regulamentação jurídica, as regras são ditadas pela instituição médica, tomando as decisões e estabelecendo princípios , de acordo com seu entendimento.
São os seguintes os aspectos que ocupam a análise da legislação, a saber:
§ “perfil” de quem estaria habilitado a recorrer ao procedimento;
§ oportunidade ou não da compensação;
§ anonimato;
§ requisitos a serem exigidos de uma mãe de substituição.
No que tange às mães de substituição, assim estabelece a referida resolução, ipsis litteris:
VII – Sobre a gestação de substituição (doação temporária do útero)
As clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de RA para criarem situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contra – indique a gestação na doadora genética.
1 – As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.
2 – A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial. (grifamos)
Com o surgimento da locação do útero, questiona-se se a lei do contrato pode ou não ser aplicada quando a questão diz respeito à gestação e à entrega de um bebê.
Þ O papel da noção de contrato:
No que tange a este tema, faz-se necessária a distinção entre a fertilização in vitro e a técnica da “mãe de substituição”.
A questão das mães de substituição necessita de uma análise específica, pois implica um processo social (com aspectos médicos e jurídicos).
A fertilização in vitro significa a doação do óvulo e a doação de um embrião, o que não acarreta problemas jurídicos, uma vez que a criança vincula-se aos pais pela gestação.
O recurso da mãe de substituição surge quando a mulher está impossibilitada de carregar o embrião (impossibilidade de gestação), apelando a outra mulher, a qual carregará a criança, atuando como uma “incubadora viva”.
A contratação dos serviços de mães substitutas, que celebram contratos, os quais guardam semelhança com os contratos de locação, tende a se desenvolver. Nesse caso, suscita-se a seguinte questão: É possível assimilar a noção de contrato comercial ao contrato de aluguel envolvendo a gestação de uma criança com posterior entrega?
A questão fundamental, a ser enfrentada pela sociedade, é a de proibir tais contratos, ou torná-los obrigatórios.
Os defensores do contrato afirmam que é através dessa peça que a criança será garantida.
No caso de um contrato, as decisões a serem tomadas devem ser alheias aos interesses particulares, considerando-se os interesses do nascituro.
As legislações de diversos países, em um primeiro instante, posicionavam-se no sentido de considerar a nulidade absoluta dos contratos sobre maternidade de substituição, todavia, sem efeito jurídico.
A intenção dos legisladores foi a de evitar e prevenir a exploração comercial, inclusive estabelecendo sanções penais à publicidade, incitação e intermediação levada a cabo por pessoas ou instituições.
Considerando o aspecto psicológico, as mulheres que já passaram pela experiência de “emprestar” seu útero possuem um entendimento que converge com o seguinte pensamento:
…acordos de aluguel não deviam ser permitidos pelos Tribunais… esses arranjos causarão graves danos psicológicos e sociais à mãe de aluguel… o impacto nestas mulheres será enorme e permanente.
Tendo em vista o ordenamento jurídico brasileiro, o qual entende que pessoas presentes ou futuras não podem ser objeto de contrato, bem como o aspecto psicológico, afirma-se que o direito positivo, infraconstitucional, rejeitará a idéia de contrato de mãe de substituição.
Þ A invalidade de um contrato pago:
O ato de entrega de um bebê mediante pagamento será válido? Será este reconhecido como um negócio jurídico, um contrato? Após o acordo virão as obrigações para cada um dos intervenientes, cujo cumprimento se espera. Interessa-nos sublinhar o caráter oneroso do negócio, ou seja, o fato de a mulher gerar uma criança em troca de pagamento.
Segundo a doutrina portuguesa, neste tipo de contrato, há uma “coisificação” da pessoa humana, como se a pouco pudéssemos admitir algo como “promoções de bebês” ou ainda “vendas em segunda mão”.
Segundo os defensores da admissibilidade do pagamento, a doação temporária de útero implica no pagamento por um serviço de caráter pessoal, como é feito pagamento a um médico por uma fertilização in vitro. No entanto, essa tese parece não ter convencido a maioria dos autores, que reafirmam que o interesse do casal está na criança e não no processo de gestação, que constitui apenas uma etapa necessária à conclusão do fato.
As discussões jurídicas giram em torno de questionamentos feitos em torno da admissibilidade de contrato: o serviço pessoal de gestação pode ser tratado como outro serviço qualquer? Muitos juristas afirmam que não porque a maternidade, além de ter implicações mais complexas na esfera jurídica (sucessão, alimentos, entre outros), não se inicia ou se extingue com um contrato.
Outros argumentos usados contra a admissibilidade de um contrato:
§ As mulheres de classe econômica inferior seriam estimuladas a gerar filhos com finalidade comercial;
§ Segundo o art. 199, § 4° da Constituição Federal, constitui ato ilícito a comercialização de órgãos. A aquisição/ disponibilização deve ser realizada a título gratuito;
§ Mesmo com a garantia de pagamento, é real a possibilidade da mulher que se dispõe a gerar um bebê nessa condição criar laços afetivos com a criança; a separação da criança pode levar a mãe natural ao consumo de drogas, álcool e tabaco.
Pode-se concluir que o emprego da técnica de doação temporária de útero mediante pagamento mostra-se inviável, tanto sob o aspecto jurídico quanto sob o aspecto social.
Þ A invalidade do contrato gratuito:
Nos contratos gratuitos não há intuito lucrativo e a intenção das partes, geralmente parentes, é cândida. Ou seja, a elaboração de um contrato seria desnecessário ? Vejamos alguns argumentos a favor e contra esse procedimento:
§ O direito constitucional de constituir família. Resta saber se isso lhes dá a faculdade de recorrerem a meios de reprodução assistida.
§ Se uma mulher pode ceder seu filho para ser adotado. Por que não programar uma gravidez, para cedê-lo posteriormente a outrem.
Guilherme Freire Falcão de Oliveira afirma que “a gestação e entrega do filho, a troco de dinheiro, afeta a dignidade da mulher que vende a sua capacidade reprodutora; e a dignidade do filho que é avaliado em dinheiro e trocado por uma certa quantia...a gestação para outrem é considerada um fenômeno pertubante demais para ser bem aceito. Assim – e por enquanto – não é legítimo emendar esse velho problema da nossa cultura afetiva – Mãe há só uma !” (grifamos)
Até o presente momento, um contrato é inexecutável em Direito, haja vista que o procedimento não oferece segurança jurídica alguma, colocando questões de ordem ética, psicológica e jurídica em jogo.
Þ A situação da barriga de aluguel em alguns países:
- Proibida: Alemanha, Espanha, França, Itália, Japão, Suécia e Suíça.
- Permitida: Bélgica, Canadá, EUA, Holanda e Inglaterra.
- Aceita apenas entre parentes: Brasil e Hungria.
Ø A Necessidade de Regulamentação
Aqueles que são favoráveis à gestação de substituição (ou barriga de aluguel) justificam seu posicionamento com base no fato de que o número de casais inférteis ou estéreis é muito significativo, chegando ao índice de 10% em países como a Espanha e o Brasil. O desenvolvimento científico tem possibilitado o aperfeiçoamento de novas técnicas que possibilitam à maioria dos casais inférteis ou estéreis a realização do sonho de terem seus próprios filhos.
Outro argumento favorável à normatização da Gestação de Substituição é o fato de que é preciso regulamentar o desenvolvimento e a utilização das técnicas de reprodução assistida, haja vista que a evolução científica já permitiu a realização de procedimentos controversos, como a clonagem de animais. Como não é possível retroceder no avanço científico, em que técnicas e procedimentos já conhecidos da comunidade científica e de parte da sociedade, que têm nessas técnicas a solução para parte de seus problemas, faz-se necessário regulamentar e trazer para a esfera jurídica essa realidade já vivida pela sociedade.
O fenômeno da reprodução assistida trouxe a necessidade de reflexão acerca dos valores éticos e morais frente a evolução científica. Independente da posição que se adota em relação à gestação de substituição, percebe-se que é preciso regulamentar essa situação, permitindo-a, proibindo-a ou restringindo-a, a fim de que se imprima no ordenamento jurídico os anseios da sociedade como um todo. A normatização dessas técnicas significaria equacionar duas demandas atuais: identificar os procedimentos válidos que permitam aos indivíduos estéreis a realização da paternidade/ maternidade com segurança e estabelecer limites éticos ao desenvolvimento científico.
O projeto de lei n.° 2855 de 1997, em tramitação na Câmara dos Deputados, busca regulamentar em lei a postura que já é adotada pelo Conselho Federal de Medicina. O projeto regulamenta as técnicas e as condutas éticas sobre a Reprodução Humana Assistida (RHA), como a gestação de substituição, dentre outras técnicas.
Seguem alguns pontos de que trata o projeto, acerca da utilização da técnica de Gestação de Substituição e de suas implicações na esfera jurídica:
Princípios Gerais
Art. 2° - As técnicas de RHA teriam por finalidade a participação médica no processo de procriação apenas nos casos em que é comprovada a esterilidade ou infertilidade humana, quando outras formas terapêuticas tenham se mostrado ineficazes.
Art. 4° - Toda mulher poderá ser usuária das técnicas de RHA independentemente do seu estado civil, mas desde que tenha solicitado e concordado livre e conscientemente em documento de consentimento.
Art. 5° – É obrigatória a informação completa à paciente ou casal sobre a técnica de RHA proposta, especialmente sobre dados jurídicos, éticos, econômicos, biológicos, detalhamento médico de procedimentos, os riscos e resultados estatísticos.
Da Gestação de Substituição
Art. 15° – A gestação de substituição é permitida nos casos em que a futura mãe legal, por defeito congênito ou adquirido, não possa desenvolvê-la.
Art. 16° – A doação temporária do útero não poderá ter objetivo comercial ou lucrativo.
Art. 17° – É indispensável a autorização do Conselho Nacional de RHA para a doação temporária do útero, salvo nos casos em que a doadora seja parente até 4° grau, consangüíneo ou afim da futura mãe legal.
Dos Pais e dos Filhos
Art. 19° - Fica vedada a inscrição na certidão de nascimento de qualquer observação sobre a condição genética do filho nascido por técnica de RHA.
Art. 20° – O registro civil não poderá ser questionado sob a alegação do filho ter nascido em decorrência da utilização de técnica de RHA.
Art. 21° – A revelação da identidade do doador (em decorrência de motivação médica) não será motivo para determinação de nova filiação.
Ø Barriga de Aluguel – Obrigação Lícita?
Tendo em vista todos os aspectos até então apresentados, faz-se um entendimento contrário a barriga de aluguel.
A resolução do CFM restringe a mãe de substituição ao âmbito familiar objetivando vetar a comercialização da prática, ou seja, a barriga de aluguel. Destarte, entende-se que a barriga de aluguel caracteriza uma espécie de comércio, mais especificamente um negócio, o qual é explicitamente vetado no texto constitucional, como visto anteriormente.
Exsurge também a questão de colocar um ser humano como objeto contratual, o que é inadmissível no ordenamento jurídico infraconstitucional.
Outro ponto a ser analisado diz respeito à conceituação do termo obrigação. O doutrinador Clóvis Beviláqua apresenta o seguinte conceito para o termo obrigação: Obrigação é a relação transitória de direito, que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa economicamente apreciável, em proveito de alguém, que, por ato nosso, ou de alguém conosco juridicamente relacionado, ou em virtude de lei, adquiriu o direito de exigir de nós essa ação ou omissão.
Assim entende o autor Washington de Barros Monteiro, o qual afirma que a obrigação é a relação jurídica de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio.
Com base no conceito de obrigação, faz-se necessária análise da estrutura dessa relação jurídica, ressaltando seus elementos constitutivos, a saber:
§ pessoal ou subjetivo – sujeito ativo (credor) e sujeito passivo (devedor);
§ material – objeto da obrigação, que é a prestação positiva ou negativa do devedor;
§ vínculo jurídico – sujeita o devedor à realização de uma prestação positiva ou negativa no interesse do credor.
Tendo em vista os conceitos de obrigação acima apresentados, será feita a análise da licitude da barriga de aluguel dentro dos parâmetros até então apresentados.
Em um contrato de barriga de aluguel, assim ficariam dispostos os elementos constitutivos do tema:
§ sujeitos ativo e passivo: pai e mãe contratantes e mãe substituta;
§ prestação: criança;
§ vínculo jurídico: a mãe contratante impõe a entrega da criança à mãe substituta.
O que caracteriza a licitude da obrigação é a licitude da prestação.
Destarte, faz-se necessária uma explanação sobre o elemento prestação, a qual, para ser cumprida pelo devedor deve ser:
§ lícita – conforme ao ordenamento jurídico, à moral, aos bons costumes e à ordem pública.
§ possível física e juridicamente – pode ser realizada de acordo com as possibilidades e sem a proibição legal.
§ determinada ou determinável – perfeita individuação do objeto da prestação, ou desde a constituição da relação creditória ou no momento do cumprimento da mesma.
§ patrimonial – deve ser suscetível de estimação econômica, sob pena de não constituir uma obrigação jurídica.
No que tange à licitude da obrigação, faz-se o entendimento de que a entrega de uma criança não está de acordo com o direito, assim como com a moral, os bons costumes e a ordem pública. Isso posto, a entrega de uma criança não se caracteriza como uma prestação lícita, descaracterizando a licitude da obrigação.
Haja vista os aspectos então apresentados, julga-se imoral e ilegal colocar uma criança como algo economicamente apreciável ou como uma prestação pessoal econômica, afirmando que a mesma faça parte do patrimônio de alguém.
Ex positis, entende-se que um contrato tendo como objeto um ser humano é inadmissível no ordenamento jurídico, caracterizando uma obrigação ilícita, ou seja, desprovida do caráter jurídico.
CONCLUSÃO
Se a necessidade de que seja criada uma legislação sobre o assunto está se impondo de forma cada vez mais veemente, é por se fazer necessário que se assegure as melhores garantias de liceidade, e o mais importante, o bem maior: a criança.
O respeito à pessoa humana justifica todo e qualquer tipo de intervenção do Direito.
Uma frase que conclui muito bem esse trabalho é a seguinte:
“Os conhecimentos científicos não devem ser utilizados senão para servir à dignidade, à integridade e ao aperfeiçoamento do homem.” 







Fonte: Renata Cavalcante Scutti

BIBLIOGRAFIA
¨ Constituição Federal, de 1988.
¨ LEITE, Eduardo de O. Procriações Artificiais e o Direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 1995.
¨ DINIZ, M.ª Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – Teoria Geral das Obrigações. 2° volume. 16ª edição. Editora Saraiva. São Paulo. 2002.6
¨ OLIVEIRA, Guilherme Freire Falcão de. Mãe há só uma (duas)! – o contrato de gestação. Editora Coimbra; 1992.
¨ PROJETO DE LEI n.º 2.855 de 1997 – Dispõe sobre a utilização de técnicas de reprodução humana assistida.
¨ RESOLUÇÃO n.º 1.358 de 1992, Conselho Federal de Medicina.
¨ www.marieclaire.com.br
¨ www.senado.gov.br
¨ www.oab-go.com.br
¨ www.cfm.org.br
¨ www.direito.com.br

sexta-feira, 15 de julho de 2011

"Tudo por um filho"

Desde que o mundo é mundo, a história é a mesma: homens e mulheres se conhecem, se casam e, mais cedo ou mais tarde, querem aumentar a família. As coisas não ocorrem necessariamente nessa ordem, mas ter filho é o caminho natural da espécie. Bem, para dois em cada dez casais o caminho não é tão natural assim. Oito milhões de casais brasileiros simplesmente não conseguem ter filhos por métodos naturais. São infertéis por variadas razões. Há uma excelente notícia para quase todos eles: a ciência já é capaz de vencer a batalha em nove de cada dez casos de infertilidade. No que diz respeito à esterilidade masculina, as chances são ainda maiores. Elas beiram os 100%. "Com todas as ferramentas que a ciência já colocou a nossa disposição, praticamente todos os casais podem ter filhos hoje", diz o ginecologista Eduardo Motta, professor da Universidade Federal de São Paulo e diretor do Centro de Medicina Reprodutiva Huntington.

Não existe casamento mais feliz: a ousadia dos cientistas só é superada pela dos pais, dispostos a tudo por um filho. Mulheres podem engravidar depois da menopausa, a falta de espermatozóides deixou de ser impedimento à paternidade e já é possível adotar uma criança na forma de um embrião de apenas oito células, senti-la desenvolver-se numa gravidez normal e trazê-la ao mundo num parto perfeitamente convencional. Em Vitória, no Espírito Santo, uma contadora de 40 anos está entrando na nona semana de uma gestação produzida por uma técnica novíssima, a do congelamento de óvulos. Ela tinha tomado o cuidado de congelar seus óvulos há três anos, após receber o diagnóstico de menopausa precoce. Em março, finalmente, resolveu que era hora de encomendar o bebê. Os óvulos foram descongelados, fertilizados com o sêmen do marido e implantados em seu útero. Em São Paulo, uma administradora de empresas decidiu engravidar novamente três décadas depois de ter a primeira filha. Procurou ajuda médica, implantou um óvulo doado e ficou grávida à beira dos 54 anos. Sua filha, Mariana, tem agora 6 anos. "Sou mãe com paciência de avó", diz ela. 



Os anos 90 foram a década da reprodução assistida no Brasil. A maioria das 130 clínicas existentes no país surgiu nos últimos dez anos. Em 1993 foram realizadas 300 tentativas de fertilização artificial. No ano passado, chegou-se a 6.000. Dois mil bebês nascem por ano. O número, que não representa nem 1% do total de nascimentos, ainda é modesto se comparado ao de países ricos. Na França, quase metade dos bebês é resultado do trabalho de laboratório. Mas o Brasil fincou bandeira no cenário internacional. Experiências inéditas e referenciais para a ciência mundial são feitas por brasileiros. Cientistas experimentam novas técnicas e medicamentos tão logo eles são apresentados em algum canto do mundo. A ousadia garantiu prestígio na área reprodutiva que só encontra paralelo na cirurgia plástica, ramo da medicina no qual o Brasil desfruta reputação como centro de excelência. Desde o nascimento do primeiro bebê de proveta, uma inglesinha chamada Louise Brown, em 1978, as técnicas evoluíram de modo espetacular. A chance de obter uma gravidez em laboratório era então a de um tiro no escuro – não ultrapassava a taxa de 5%. Cinco anos atrás, o índice médio de sucesso chegava a 25%. Hoje está em torno de 35%, com possibilidade de alcançar 50% de acordo com a técnica utilizada. Em outras palavras, significa que, atualmente, de cada três casais que se submetem aos tratamentos de infertilidade, dois já levam pelo menos um bebê para casa.

O salto é ainda mais impressionante se considerarmos que se trata de estatística por tentativa. Ou seja, a cada período fértil da mulher. Para se ter idéia das dificuldades de gerar uma nova vida, a probabilidade de uma gravidez natural em casais normais varia de 18% a 20% a cada mês. Pode-se dizer que os casais inférteis que se submetem a tratamentos têm quase o dobro de chance de engravidar que um casal sem problema algum de infertilidade.

A técnica que deu origem ao primeiro bebê de proveta consistia em retirar o único óvulo produzido pela mulher e colocá-lo num vidro (a proveta) junto com os espermatozóides do homem. Então, esperava-se que o resto acontecesse naturalmente, ou seja, que um espermatozóide conseguisse penetrar o óvulo e fecundá-lo. Em seguida, o embrião era transferido para o útero da mãe. A distância entre a eficácia desse método pioneiro e o que se faz hoje pode ser comparada à existente entre a válvula e o chip de computador. Antes de mais nada, descobriu-se um hormônio capaz de estimular a ovulação. Em condições normais, apenas um folículo amadurece a cada ciclo, e só um óvulo é liberado. Hoje, com a ajuda médica, consegue-se uma média de dez óvulos a cada vez. A chance de engravidar multiplica-se pela quantidade de óvulos disponíveis. Os nascimentos múltiplos são, por sinal, um efeito colateral indesejado ainda sem solução.

O bebê de proveta é o método mais corriqueiro, simples e barato de reprodução assistida. Já resultou no nascimento de 300.000 crianças, 7.000 delas no Brasil. O princípio é o mesmo do tempo de Louise Brown, mas conta-se com a possibilidade de o espermatozóide não conseguir penetrar o óvulo – problema comum em casos de infertilidade. O que se faz então é injetá-lo com uma agulha finíssima na célula feminina, garantindo assim a fecundação. "O objetivo é eliminar os obstáculos ao trabalho dos espermatozóides", resume o húngaro Peter Nagy, um dos primeiros a usar o procedimento, em 1991. A manipulação de gametas ficou mais eficiente com o aperfeiçoamento do microscópio nos anos seguintes. Além de lentes de maior acuidade, o aparelho transformou-se numa espécie de robô com dois braços: um segura o óvulo, outro, a agulha que conduz o espermatozóide. Houve também avanço nos procedimentos de diagnósticos, com instrumentos que permitem o exame visual do interior do útero. A soma disso tudo permitiu à medicina reprodutiva dar o grande salto na virada do milênio, o da manipulação genética.

Durante cinco anos, a empresária Lúcia Pinto, de Campinas, no interior de São Paulo, tentou engravidar. Depois de várias experiências com fertilização in vitro, descobriu-se que não produzia óvulos saudáveis, problema comum em mulheres por volta de 40 anos. Na época, ela tinha 38. Seu médico adotou uma técnica então recém-inventada e até hoje proibida na maioria dos países, a transferência de citoplasma. Pegou o óvulo de Lúcia, retirou parte do citoplasma e injetou parte do citoplasma de um óvulo jovem de uma doadora. Os especialistas acreditam que a troca de 10% a 15% do citoplasma "ruim" pelo "bom" é capaz de devolver vitalidade ao óvulo mais fraco. A técnica ainda é experimental, mas resultou em três dezenas de nascimentos no Brasil. Deu certo com Lúcia. Ela engravidou de Rafaela, agora com 2 anos. "Já estava perdendo a esperança", diz Lúcia. "Demorou muito até que eu conseguisse engravidar, foi um processo muito doloroso."

Não faz muito tempo, aos 40 anos as mulheres já se preparavam para ser avós. O corpo está mais bem preparado para a maternidade entre os 20 e os 30 anos, e ser mãe pela primeira vez depois dos 35 anos era extremamente arriscado. O que se vê hoje é o contorno de outra realidade. É cada vez maior o número de mulheres que adiam a gravidez para os 40, 50 anos de idade. Os motivos são os mais diversos. Atingir a maturidade profissional encabeça a lista. Em seguida vêm a vontade de ter filhos no segundo casamento, os planos de viagens, de estudos. O problema é que a partir dos 35 anos a quantidade de óvulos que a mulher produz sofre redução significativa, e depois dos 45 praticamente desaparecem. Assim, boa parte das mulheres que deixam a gravidez para mais tarde enfrenta o drama de já estar infértil. A solução clássica da medicina é recorrer a doadores. Pega-se o óvulo de outra pessoa, fecunda-se com o sêmen do marido (ou de outro doador) e gera-se uma criança com relativa facilidade. Teoricamente, não há limite de idade para a mulher engravidar. Suas limitações se restringem à produção de óvulos e a suas condições físicas. Em bom estado de saúde, ela pode ter filhos a qualquer hora, mesmo na menopausa. "O corpo vai estar sempre preparado para a gestação", diz o médico Edson Borges, presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida.

Praticamente toda mulher pode ser mãe se estiver disposta a aceitar o óvulo de outra mulher, a adotar um embrião ou recorrer à barriga de aluguel. O recorde mundial é de uma italiana, que foi mãe aos 63 anos. Agora, à beira dos 70, seu filho tem 6 anos de idade. O título brasileiro pertence a uma baiana de Salvador, de 62, mãe de um garoto de 4. Ambas se tornaram mães com a ajuda de um óvulo doado. Nem sempre dá certo, evidentemente. Os médicos não conseguem chegar a um diagnóstico preciso em 8% dos casos de infertilidade feminina, e 1% das mulheres não engravida de jeito nenhum. Quando nada parece dar certo ou não há disposição para o penoso tratamento da fertilização in vitro, resta um último recurso: a adoção de um embrião abandonado numa clínica de fertilização. Estima-se que existam no Brasil 20.000 embriões congelados. Nos Estados Unidos, são 250.000. Em cada ciclo de fertilização artificial, uma mulher gera uma dezena de óvulos. Para evitar nascimentos múltiplos, no máximo quatro são implantados em seu útero. O restante é congelado para, quem sabe um dia, ser utilizado novamente pelo casal. Ocorre que a maioria desiste de ter mais filhos, e, para complicar, uma resolução do Conselho Federal de Medicina proíbe a destruição do material. Essa sementinha de vida tem apenas oito células, desenvolvimento atingido no terceiro dia após a concepção. Cerca de 200 brasileiros foram adotados em forma de embrião nos últimos cinco anos. Vânia, médica carioca de 48 anos, era recém-divorciada e já não ovulava quando adotou dois embriões – hoje um rechonchudo casalzinho de 1 ano e 9 meses. "Eles estavam dentro de um tubo de ensaio", conta. "Tudo que se via era a gotinha cor-de-rosa do soro anticoagulante sobre os embriõezinhos." No início, ela foi atormentada pelo pensamento de que tinha dentro de si algo que não era dela. A sensação passou em três meses, quando a barriga começou a crescer. "Eles estariam mofando num freezer se eu não os tivesse tirado de lá", diz. "Eu os alimentei dentro do meu útero durante nove meses. Eles não existiriam sem o meu corpo."

Ela tem razão. Os médicos já sabem que o útero não é apenas um lugar para alojar o bebê por nove meses. Além de fornecer alimento e condições de desenvolvimento, o ambiente uterino funciona como antídoto para as aberrações que a genética pode produzir. Ao contrário do que a maioria supõe, o código genético não cuida sozinho do desenvolvimento do feto. É a troca de sangue com a mãe que ativa os genes do embrião e determina o momento exato de formar os órgãos e membros. Embriões sadios implantados no útero de mulheres diabéticas podem desenvolver a doença simplesmente por emulação da biologia materna. Por isso, é improvável que um dia exista um útero artificial.

De todos os avanços da reprodução artificial, a área que chegou mais longe foi a dos tratamentos de problemas masculinos, que representam 30% de todos os casos de infertilidade. As mulheres são responsáveis por outros 30% e o casal, pelos 40% restantes. Veja o caso de Cláudio, de 39 anos, e Ormezinda, 37, do Rio de Janeiro. Durante treze anos, o analista de sistemas e a dona-de-casa tentaram ter filhos – e nada. Descobriu-se então que Cláudio padecia de azoospermia, ou ausência de espermatozóides no sêmen. Ele não quis aceitar uma doação de sêmen. "Achava que as pessoas podiam confundir esterilidade com impotência", diz. Ele não tinha espermatozóides, mas dentro de seu testículo carregava espermátides, as células que, depois de amadurecidas, se transformam em espermatozóides. O médico então experimentou uma técnica que amadurece a espermátide em laboratório. No seu caso as chances de sucesso eram estimadas em 48%. Deu certo. Os óvulos de Ormezinda (que fez promessa para Nossa Senhora Aparecida) foram fertilizados in vitro com os gametas do marido e ela engravidou na primeira tentativa. Gabriel, Lucas e Iasmin nasceram há um ano e sete meses. De acordo com os especialistas, de cada 100 homens, 96 têm espermatozóides no sêmen. Entre os quatro que não têm, três possuem o gameta dentro dos testículos ou dos epidídimos, canais que conduzem o esperma. Aquele que não possui nenhum espermatozóide ainda conta com cerca de 50% de chance de ter a espermátide.


Técnicas como a transferência de citoplasma e o amadurecimento de espermátides estão entre as mais avançadas existentes. Na sexta-feira passada, cientistas americanos anunciaram o nascimento de quinze bebês gerados a partir de óvulos geneticamente alterados. Para corrigir problemas de infertilidade das mães, eles injetaram genes de doadores saudáveis. O resultado é que os bebês têm o código genético proveniente de três pessoas, não apenas da mãe e do pai. Pesquisas parecidas, altamente experimentais, são feitas em clínicas brasileiras. Peter Nagy, que imigrou para o Brasil na década passada, trabalha numa técnica que permite transformar qualquer célula não-reprodutiva do corpo de uma mulher em óvulo saudável. O primeiro embrião (como se chama o estágio inicial do desenvolvimento da nova vida) produzido por esse método está guardado num tanque de nitrogênio, a uma temperatura de 80 graus negativos, numa clínica paulista. Antes de transplantá-lo para o útero da mãe, uma advogada de Manaus, de 44 anos, os médicos aguardam os resultados de cobaias animais submetidas ao mesmo procedimento. Por essa razão, esperam ansiosos pelo nascimento de 21 bezerros gerados por esse método. Seis vacas estão em um curral da escola de Veterinária da Universidade de São Paulo. Há cinqüenta mulheres numa lista de espera dispostas a correr o risco da experiência para ter o próprio filho. "Apesar de o embrião ser comprovadamente sadio, é melhor esperar, porque nunca se sabe o que pode acontecer no ventre", diz o urologista Roger Abdelmassih, dono da maior clínica de fertilização artificial do Brasil, na qual se desenvolveu a nova técnica.

A criação de um óvulo artificial está tão próxima da clonagem que dá arrepios – mas são coisas diferentes. Na clonagem, se faz cópia completa de um indivíduo adulto a partir de uma de suas células. O processo é tão mais complexo e arriscado que nunca foi repetido depois do nascimento da ovelha "Dolly", em 1997. A advogada amazonense faz parte daquela minoria cujos problemas de gestação insistem em desafiar a ciência. Devido a uma anomalia genética, seus óvulos produzem embriões defeituosos. Pelos exames realizados em laboratório, o embrião gerado pela união do óvulo artificial com o espermatozóide de seu marido não tem nenhum problema. "O importante é que meu bebê seja perfeito, não o método de concepção", disse a futura mamãe a VEJA. "Não vejo a hora de poder gerá-lo, como fazem todas as mulheres do mundo."

Mesmo com todo o avanço da ciência, está longe o dia em que todas as questões, das afetivas às éticas, serão encaradas com naturalidade. Natural é ter filhos concebidos em casa, não nos ambientes frios e calculistas de uma clínica. O caminho da ciência exige mais sacrifícios. Embora o grau de sucesso da reprodução assistida tenha melhorado espetacularmente, vale relembrar que apenas três em cada dez mulheres conseguiram engravidar na primeira tentativa. Toda nova tentativa exige injeções diárias de hormônios para provocar ovulação. O tratamento cobra do casal muito controle, dedicação e exames dolorosos. A cada nova menstruação, o mundo parece desabar. "A frustração é enorme. Culpa, vergonha e tristeza são sentimentos que acompanham a jornada desses casais", diz a psicóloga Débora Seibel, de São Paulo, que se especializou em tratar casais que tentam engravidar em clínicas de fertilização. Chega uma hora em que é o próprio desgaste emocional que estabelece seus limites. "Os níveis de stress e depressão são altíssimos", afirma outra psicóloga, Liliana Seger, autora de uma tese de doutorado pela Universidade de São Paulo que avalia o impacto emocional nos casais que procuram ajuda médica. Liliana acompanhou dezenas de casais em tratamento durante um ano em duas clínicas paulistas. "O principal motivo é que há muito investimento em jogo – tanto emocional quanto financeiro."

Sim, dinheiro também é um fator. Um tratamento em clínicas particulares sai bem caro. Cada tentativa pode custar quase o preço de um carro popular – entre 6 e 12.000 reais. Até conseguir um bebê, um casal alcança facilmente a cifra de 30.000 reais. Uma clínica chega a oferecer pacotes: pagam-se 15.000 reais por três tentativas. Já existem sete hospitais públicos no país – em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre, Campinas e Ribeirão Preto – que oferecem o serviço de graça. Mas, com exceção do Hospital Pérola Byington, de São Paulo, é o próprio paciente quem paga pelo medicamento, que pode custar entre 500 e 3.000 reais. As filas são um obstáculo: mais de 300 pessoas esperam pelo atendimento em cada unidade. A maioria não desanima, disposta a tudo por um filho.

Fonte: Revista Veja